Hoje fiz questão de apanhar o autocarro 10 para ir para o trabalho. Estranhamente, ninguem comentava a subida dos preços. Até que, com umas quantas paragens já feitas, entra uma senhora que estende 35 escudos ao motorista e este devolve-lhe os 5 escudos dizendo-lhe que se enganara. Mas a senhora faz questão de esclarecer-lhe que os preços aumentaram e que agora o bilhete custa 35 escudos. O motorista bate com a mão na testa. Tinha se esquecido disso. No entanto, diz que ainda não lhe disseram nada lá na empresa, por isso continua a cobrar 30 escudos.
Ao mesmo tempo, por todo o autocarro há uma explosão colectiva com todos a, finalmente, comentar e opinar sobre o aumento dos preços. Há um pequeno grupo que não sabia de nada disso.
"Não viram o telejornal ontem?" - pergunta uma moça que vai sentada atrás do motorista. Não, responde-lhe outra que ficou aflita com a novidade. Mais atrás, um pequeno grupo abandona a discusão sobre os preços e passa a criticar as pessoas que não vêm "as coisas que realmente interessam e só querem saber de telenovelas".
De todo o lado chegam comentários, alguns descontentes, a maioria conformista. O senhor sentado ao meu lado, vestindo uma camisola do Benfica, declara que "a culpa é nossa. Fomos nós que os pusemos lá, agora é aguentar." Uma mulher sentada mais a frente revida que "o Governo fez o que tinha a fazer e o que faria qualquer Governo que lá estivesse". Alguns protestam. A moça que não viu o telejornal e não sabia de nada, está quase em lágrimas. Diz ela que apanha quatro autocarros por dia, já com muitos sacrificios. "Mo ki n'ta fazi go?"*, pergunta ela para ninguem.
O homem da camisola do Benfica critica o povo de Cabo Verde, que é muito passivo e desunido. Que hoje ninguem devia ter entrado nos autocarros. Que se fosse noutro país aquilo daria até guerra...
Depois de algum tempo, acabou a cocofonia naquela autêntica torre de babel, e eu tentei voltar ao Guia de Cinema - Iniciação á História e Estética de Cinema. Mas, por alguma razão, não consegui me concentrar no nascimento do peplum no cinema italiano. Fechei o livro e começei a olhar para as pessoas. A moça que não sabia como fazer para pagar 35 escudos quatro vezes por dia ia com a cara fechada, duas rugas verticais entre as sobrancelhas. O senhor da camisola do benfica, sentado ao meu lado, olhava fixamente para o bilhete de autocarro que segurava com as duas mãos, como que a fazer contas.
Senti-me estranha (uma espécie de traidora infiltrada?) ao pensar que eu devia ser das poucas ali que estava a decidir deixar, de uma vez por todas, de ir para o trabalho de taxi.
*Como vou fazer agora?
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